PUBLICADOS IMPUBLICÁVEIS: BARRACOS NA LITERATURA!
Todo mundo está careca de saber: a tribo dos escritores é um paiol de pólvora, perto do qual o Oriente Médio não passa de um Shangri-lá. As razões para os pitis literários são inúmeras: divergências estéticas, agendas políticas, devoções religiosas, chauvinismos, etc.. Porém, o supremo pomo da discórdia parece residir no ciúme profissional. É como se a zona mais sensível da anatomia dos literatos não fosse nem a mente nem o coração mas o cotovelo. Em último caso, os autores chegam a vias de fato. Por vezes, essas aversões começam como amizades fofinhas.
Exemplos carismáticos:
1) GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ X VARGAS LLOSA Um segredo que durou mais de 30 anos foi porque diabo Vargas Llosa esmurrou Garcia Marquez no dia 14 de fevereiro de 1976. Também nesta rixa a antipatia começou como empatia – tanto que o colombiano convidou o peruano para padrinho do seu filho Gabriel. Ambos partilharam o expatriamento em Barcelona, onde foram bons vizinhos. Até que, no dia fatídico, Llosa infligiu ao ex-parça um olho esquerdo roxo digno de um panda (abaixo a foto de Gabo escoiceado, e o punho que foi a arma do crime).
É certo que havia potenciais melindres entre os dois. Políticos? Ao longo da vida, Gabo observou uma marmórea ortodoxia esquerdista, apoiando impavidamente o ditador Fidel Castro, com quem desenvolveu um afetuoso relacionamento. Justificava-se alegando que a estima transcendia ideologias: “Poucas pessoas sabem que Castro é um leitor voraz, que ama e conhece a melhor literatura universal.” Reinaldo Arenas e Cabrera Infante que o digam. É verdade que Marquez fez um brilhante retrato do caudilho latino-americano em “O Outono do Patriarca”, mas nunca condenou a aplicação da pena de morte sem culpa pelos lados de Havana – sentença a que sempre se opôs em outras paragens.
(RETRATO DOS ARTISTAS QUANDO JOVENS)
Vargas Llosa passou a chamar Gabo de “o cortesão”. O romancista peruano, depois de um flerte juvenil com a esquerda, zarpou na direção oposta. Em 1990, foi candidato à Presidência do Peru por uma coligação de centro-direita. Obteve 34% dos votos, derrotado por Alberto Fujimori (o qual, em 2000, escafedeu-se para o Japão, enlameado por um escândalo de corrupção). Contudo, não foram as discrepâncias políticas que ditaram o arranca-rabo na Cidade do México. Nem o despeito literário: mais cedo ou mais tarde, ambos embolsaram o Nobel. Para decifrar o mistério, convém seguir o clichê policial: “cherchez la femme” (procure a mulher).
O tempo fechou num cinema mexicano, durante a estréia de um filme então badalado e hoje misericordiosamente esquecido. Gabo avistou o amigo e se encaminhou para ele de braços escancarados de par em par. Foi recebido com uma patada no olho esquerdo. Com o sangue esguichando tipo chafariz, Marquez ainda conseguiu ouvir o agressor espumar: “Como se atreve, depois do que você fez a Patrícia em Barcelona?” A turma do deixa-disso entrou em cena, enquanto alguém trazia um bife cru para o olho intumescido.
Quando Gabo fez 80 anos, uma biografia (de Dasso Saldivar) entregou o ouro. Com a sua pinta de cantor de tango (ao passo que Garcia Marquez nos dias mais garbosos lembrava um cantor de churrascaria), Llosa jamais escamoteou um forte fraquinho pelas damas. Numa viagem aérea, apaixonou-se por uma aeromoça sueca (que era ela própria um avião), escanteou a mulher e tocou para Estocolmo. Pistola, sua esposa Patrícia correu para a casa de Gabo, que a consolou. Ninguém sabe a forma (ou o tamanho) que o consolo assumiu. Contudo, Marquez sugeriu o divórcio. Outras fontes juram que Gabo cometeu a pior (ou a melhor) traição que se pode cometer contra um amigo. Eventualmente, Llosa voltou para o lar com o rabo entre as pernas, e Patrícia lhe contou do conselho de Garcia Marquez (e talvez do efusivo consolo). Daí o murro.
2) GORE VIDAL X MUITOS - Na segunda parte das suas memórias (“Point to Point Navigation”), Gore Vidal finge que refreia a língua de víbora. Truman Capote? “Oh, não entremos neste pântano fétido!” Tennesse Williams? “Ah, a paranóia dele é como um enorme buquê de buganvílias...”
(VIDAL, TENNESSE E JFK)
Felizmente para os entusiastas da esgrima verbal, Gore já tinha desembainhado várias vezes o seu florete contra aqueles dois. Tennesse? “Chamei-o de ‘Ave Gloriosa’ desde o nosso primeiro encontro, por razões que esqueci há muito. Achei que ele era tão antigo quanto Gide. Afinal, eu tinha 22 anos. Ele tinha 38, mas dizia que tinha 33.” Quando eles se conheceram em Roma, Vidal não se coibiu de contar a Williams (para o bem deste) que Lord Action, o esteta inglês residente em Florença, descrevera o autor de “Um Bonde Chamado Desejo” como “um fulaninho atarracado, taciturno, bigodudo, sem um pingo de distinção.” O que a gente não faz pelos amigos.
Com Truman Capote, o buraco foi ainda mais embaixo. Motivos não faltavam: eram dois canários – ou pavões – para o mesmíssimo poleiro. No seu famoso diário, Anais Nin descreve o primeiro encontro, em dezembro de 1945, na casa dela, onde Vidal já estava. “Quando a campainha tocou, abri a porta e vi um jovem baixo e magro, com cabelo nos olhos, estendendo a mão mais macia e invertebrada que já apertei, como um bebê se aninhando na minha.” Poucos minutos depois, a mão do bebê se eriçava para Gore Vidal. “Bem, que tal é ser um ‘enfant terrible?’”, perguntou Truman. Como ambos estavam por aqui de saber, só podia existir UM (1, I) ‘enfant terrible’ de cada vez nas letras americanas.
Ainda por cima, Gore e Truman tinham muito em comum: ambos se sentiam abandonados pelas suas mãos, eram gays e ansiavam por alcançar a imortalidade através da escrita.
(O SHOW DE TRUMAN, COM UMA CERTA LOIRINHA)
A colisão aconteceu no apartamento de...Tennesse Williams, que evocou-a com um deleite sardônico. “Eles desataram a esculachar as respectivas obras. Gore rosnou a Truman que este roubava todos as suas tramas de Carson McCullers. Truman retaliou que Vidal surrupiava os dele dos tablóides mais imundos. Literariamente, a posteridade atribuiu a vitória a Truman Capote, com uma voz ficcional mais original e madura – Gore Vidal pontificou no ensaio e nas memórias. Porém, a melhor estocada epigramática foi deste último: “A derradeira vez que vi Truman quase sentei no colo dele. Não porque me sentisse atraído. É que, ainda um tampinha, mas agora rechonchudo e flácido, ele parecia um pufe.”
3) HEMINGWAY X MULHERES . Como a quinta-essência do macho alfa, Ernest Hemingway dava uma manada de touros miúra para entrar numa briga de foice no escuro. Os seus quatro casamentos terminaram em armagedom, mas de Martha Gellhorn ele levou o troco. Uma das melhores repórteres de guerra de todos os tempos, ela era calejada em carnificinas. Escreveu sobre a Guerra Civil espanhola, a II Guerra Mundial, a Guerra do Vietnam. Numa trincheira, sentia-se como num jacuzzi. Não, não era nenhum bibelô: sempre se recusou a ter um filho de Hemingway e mais tarde adotou um: “Não há necessidade de se parir quando se pode comprar uma criança.” Nas suas memórias, não esbanja romantismo ao evocar o ex-marido: “Ernest foi o homem menos gentil que conheci, um verdadeiro suíno.” Em 1942, ao saírem de uma festa na qual enchera a cara, Hemingway teimava em guiar. Quando Martha ocupou o volante e arrancou, ele esbofeteou-a. Ela reduziu a velocidade e fez pontaria com o adorado (e novinho em folha) bólido do romancista contra uma árvore. Deixou o marido lá dentro, plantando bananeira, e tomou um táxi.
(COM MARTHA, HEMINGWAY DANÇOU)
Outra mulher que fez Hemingway baixar a bola foi Zelda Fitzgerald. Está certo que ela morreu doida varrida (em um incêndio no hospício), mas escrevia bem pra chuchu. Ernest, que era amigo da onça da F. Scott Fitzgerald (talvez desconfiasse que a posteridade fosse preferir este), comentou publicamente que o autor de “O Grande Gatsby” não agüentava a bebida e nem tinha confiança no seu pênis (apesar de Ernest ter avaliado e aprovado o equipamento de Scott num boteco parisiense, como contou em “Paris É Uma Festa”). Zelda cuspiu fogo: Hemingway não passava de “bullfighting, bullslinging and bullshit” (tourada, fanfarronice e mentira).
4) MARY MCCARTHY X LILIAN HELLMAN - Naturalmente, duas escritoras, quando se estranham, também rodam a baiana como um dervixe. Foi o caso de Mary e Lillian. Em 1980, no programa de Dick Cavett (talvez o mais brilhante apresentador da história da TV americana - entrevista no vídeo abaixo), Mary declarou que Lillian era “uma má escritora, superestimada e desonesta. Tudo que ela escreve é mentira, incluindo os ‘aa’ e os ‘ee’.”
Adivinhem quem estava assistindo, rangendo os dentes e cuspindo marimbondos? Hellmann, claro. De todos os autores que a acusaram de desonestidade intelectual, Mary MacCarthy foi a única que ela decidiu processar por difamação, exigindo uma indenização de 2 milhões e 225 mil dólares. MacCarthy estava num hotel em Londres quando recebeu a notícia – caiu na gargalhada. Quando o advogado da adversária lhe pediu que apresentasse exemplos de trambiques intelectuais de Hellman, ela abreviou a lista: 1) A alegação de Lillian de que foi a primeira a se recusar delatar nomes ao Comitê de Atividades Anti-Americanas 2) A afirmação de que Hellman desconhecia as purgas estalinistas, durante a sua visita à Rússia em 1938, quando os processos de Moscou já corriam soltos há três anos. 3) A impressão, criada nas memórias de Hellmann, de que o seu estalinismo era um lapso na compreensão do regime soviético, intrinsecamente meritório. 4) A falsificação deliberada dos fatos em “Pentimento”, outra parte das memórias de Lillian, na qual esta desempenha um papel heróico (o livro virou o filme “Julia”, com Jane Fonda e Vanessa Redgrave).
Hoje está estabelecido que (com o perdão do trocadilho infame) Hellman viajava na maionese, e mentiu mais do que o Pinóquio. Sorte ou azar, morreu durante o processo, que ficou indefinido.
5) SARTRE X CAMUS Conheceram-se em 1943, numa França ocupada pelos nazistas, e logo rolou um clima de almas gêmeas. Camus, o menino da Argélia, estudou filosofia na Universidade de Argel, ao passo que Sartre frequentou o crème de la crème da elite intelectual parisiense, a École Normale Supérieure
Ambos ficcionistas, dramaturgos, críticos de literatura e teatro, pensadores e diretores de publicações - Camus do mais importante jornal da resistência francesa (“Combat”), e Sartre da influente “Les Temps Moderns”. Tinham o mesmo editor, e os dois receberam o Nobel de Literatura : Albert em 1957 e Jean-Paul em 1964. Só Sartre esnobou o prêmio, mas jurando de pé junto que não estava emburrado porque Camus fora contemplado primeiro. Rolava outra afinidade: preferiam a companhia das mulheres. Camus resmungou: “Os homens bajulam e julgam.” Sartre confessou que se sentia entediado ao lado de marmanjos, “mas é raro que as mulheres não me entretenham”. Camus era boa pinta: durante uma viagem a Nova York, a revista Vogue o comparou a Humphrey Bogart. Estrábico e baixinho, Sartre estava longe de ser um gato: “Talvez minha obsessão pelo sexo feminino seja uma libertação do fardo da minha feiura (no fundo, ele queria ser amado não pelo seu cérebro, mas pelo seu corpicho). Para apimentar mais as coisas, Simone de Beauvoir (que a vida inteira manteve com Sartre um casamento solteiro) ficou de olho gordo em Camus, mas este rejeitou a mão boba dela.
(Paris, 1941, leitura da peça de Pablo Picasso “O Desejo Pego Pelo Rabo” - entre outros, Jacques Lacan, Simone de Beauvoir, Sartre e Camus, este dois na fila inferior)
Claro que, naquele que Camus descreveu como “o século dos rancores”, o bromance não podia durar. Entronizados como os supremos intelectuais públicos, os “maîtres à penser” de uma época, o caldo entornou com a publicação de “O Homem Revoltado”, de Camus. Por que Sartre não dava um pio sobre o Gulag soviético e as atrocidades stalinistas? A resposta é ainda hoje um paradigma: “Caro Camus, também acho os campos de concentração comunistas inadmissíveis, mas reprovo o uso que a imprensa burguesa faz deles.” A tréplica de Camus consumou o divórcio litigioso: “Os fins jamais justificam os meios. Toda ideia errada termina em derramamento de sangue, e é sempre o sangue alheio..”
Camus morreu em 1960, aos 47 anos. Costumava dizer que nada era “mais escandaloso do que a morte de uma criança, e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel”. Ele morreu num acidente de automóvel, ao acabar aceitando relutantemente uma carona para Paris no carro do editor Gallimard, que se esborrachou contra uma árvore (foto abaixo) , quando já tinha a respectiva passagem de trem no bolso.
Quando soube, Sartre carpiu: “Para todos aqueles que amavam Camus, essa morte é um absurdo insuportável.” E acrescentou com grandeza: “"O que quer que tenha feito ou decidido posteriormente, ele nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nossa cultura ou de representar a história da França e deste século". Quinze anos mais tarde, um Sartre já setentão choramingou: “Camus foi meu último bom amigo.”
6) CHICO BUARQUE X MILLÔR FERNANDES - O cartoonista Jaguar dedou tudo numa FLIP (vídeo abaixo), numa hilária entrevista para os “Cassetas” Reinaldo e Hubert. Chico era amigo do peito do jornalista de Tarso de Castro, com quem Millôr se desentendeu. Um dia, num boteco carioca, Chico (Jaguar estava lá), depois de tomar todas, tomou também as dores de Tarso e interpelou Millôr: '“O que você tem contra mim?” Millôr ficou na sua, e Chico deu uma cusparada torrencial nele. Millôr jogou tudo o que tinha à mão no autor de “A Banda”, mas não acertou bulhufas. Segundo o Jornal do Comércio, em edição de 10/02/1989, Chico Buarque, que esta semana fez 80 anos, telefonou para o ator Daniel Filho (que também teria sido atingido por uma estilingada mordaz de Millôr) e aconselhou-o: “Faça o mesmo que eu: dê uma boa cuspida nele. Mas não bata não, porque a gente não deve bater em pessoas de idade”
No programa “Roda Viva”, naquele mesmo ano de 1989, quando perguntado sobre as razões do arranca-rabo com Chiico, Millôr cunhou o epigrama letal: “Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal’”. vídeo abaixo
POR ESSAS E OUTRAS, É COMO DISSE JACQUES RIVETTE: “NÃO SE DEVE DEIXAR INTELECTUAIS BRINCAREM COM FÓSFOROS”.
ABAIXO, OS MELHORES PIORES INSULTOS:
“Não pude comparecer ao funeral dele, mas mandei um telegrama simpático dizendo que tenho a certeza de que foi um sucesso.'“ (Mark Twain)
“Estou lhe enviando duas entradas para a estreia da minha nova peça teatral. Leve um amigo - se tiver um. “(George Bernard Shaw para Winston Churchill)
“Não posso comparecer à estreia, mas irei na segunda noite - se tiver uma.” (A resposta de Churchill)
Willian Faulkner sobre Ernest Hemingway: “Ele nunca usou uma palavra que levasse um leitor ao dicionário”.
Réplica de Hemingway: “Faulkner realmente acha que as grandes emoções vêm de palavras pomposas?”
Oscar Wilde sobre Bernard Shaw: “Ele não tem nenhum inimigo no mundo - em compensação, nenhum dos seus amigos gosta dele”